domingo, 23 de junho de 2019

Escuta

Então, deixa eu te falar... Lembra daquele show que nós fomos?
Foi o nosso primeiro show juntos. Assim, de última hora, ficamos sabendo que ela estaria na cidade, organizamos tudo, compramos ingresso e fomos.
Choveu, mas não atrapalhou nada. Uma chuvinha fina, que só tornou tudo mais divertido. Tudo era mais simples, fácil, e tiramos aquela foto, que foi nossa primeira foto também.
Você olhou na tela do meu telefone e disse "ah, eu tô feio", e eu ri e fiz uma brincadeira qualquer, porque você nunca esteve feio. Nunca.
Pois hoje, assim, de bobeira pela internet, vi que a moça vai estar aqui de novo esses dias.
Lembrei daquele show, da chuva fininha, eu com a barra do vestido molhada, pisando na lama, você reclamando da foto, e a gente saindo pra comer na beira da lagoa depois.
O que me surpreendeu foi que eu não senti nada, sabe.
Não me senti nostálgica, não senti saudade de você, nem daquele dia, ou daqueles nossos dias, de nada.
Lembrei de como era tranquilo e divertido, de como você sabia falar as coisas certas, e eu sabia ouvir com bons ouvidos. Feio você nunca foi mesmo, mas com o passar do tempo ficou insuportável te ouvir.
Enfim, eu vi que a moça vai fazer um show aqui outra vez, e até coloquei o álbum dela pra tocar no Spotfy. Há muito tempo eu não conseguia ouvir aquela voz sem lembrar de você.
Escutei o álbum todo, cantei, e me senti bem.
Como nos velhos tempos, em que eu só gostava das músicas, e ainda não tinha show, nem você, nem barra de vestido molhada, nem foto na tela do telefone.
Ouvi a música e gostei, e não senti sua falta.
Os tempos que passaram, não convém repetir, não.
Eu espero que você esteja ouvindo outras músicas, e indo a outros shows...



segunda-feira, 26 de junho de 2017

Volto logo

Algo muito sutil da natureza humana costuma aparecer em conversas de despedidas breves. 
Não os escândalos e choros convulsivos dos aeroportos. Não as brigas definitivas com seus gritos, ofensas e "nunca mais!". Aquele excesso de emoção transborda nossa capacidade de metabolização, e as cenas ficam sempre meio teatrais, mesmo involuntariamente. Fica aquela sensação de que o momento é/foi surreal, algo bizarro.
Mas as despedidas breves... Os "até logo!", "até quarta-feira!", ou "depois de amanhã eu tô de volta!"...
Esses sim, deixam transparecer um tantinho da nossa forma de ser.
Aquelas conversas de corredor de prédio, com a porta entreaberta, visita e visitado sem saber se já saíram ou se ainda estão. Casos que começam a ser contados quando um nome é mencionado, revelando-se interessantes demais para ficar para depois.
Idas ao portão que duram 30, 40 minutos, naquela coisa do portão aberto, pessoas na calçada, recados, "peraí que vou te dar um pedaço pra você levar pra sua mãe", etc...
"Você soube do que aconteceu com a Vanessa?" - e dá-lhe mais meia hora de papo.
Conselhos, breves lições de moral, alfinetadas, indiretas, pedaços de bolo, vasilhas de comida de domingo, remédios pra tosse do fulaninho, e notícias de falecimento, casamento, divórcio de conhecidos...
Toda a vida se passa ali, naquelas despedidas despreocupadas, leves, agraciadas com a certeza de que não precisam ser marcantes, ou tristes, ou belas, porque as partes voltarão a se ver logo, e haverá mais tempo, muito mais tempo, para se falar sobre tudo.
São as melhores despedidas, e falam tanto de nós, justamente porque não pretendemos dar tudo, e por isso mesmo é que damos o necessário.
São também aquelas das quais mais lembramos quando percebemos que às vezes não há mais tempo.
Às vezes não há reencontro.
Algumas quartas-feiras nunca chegam.



sábado, 19 de março de 2016

Vale quanto pesa



Lembro-me nitidamente da primeira viagem que fizemos juntos. Planejamos algumas coisas com antecedência, o lugar, as datas, as passagens, mas você não gostou do hotel que escolhi. Deleguei-lhe então a tarefa de cuidar da hospedagem, mesmo com o receio de que não reservasse um lugar apropriado para passarmos as férias. 
No dia da viagem, chegamos de carro, e o local escolhido tinha uma entrada meio escondida pela auto-estrada, o que dava a sensação de que era um destes hotéis baratos, de quinta categoria. Quando estacionamos, pensei que seria uma estadia sofrida naquele lugar estranho. Porém, alguns passos adiante, já na recepção, percebi que o hotel era, na verdade, encantador. Tinha uma enorme área verde com bangalôs bem distribuídos, e algumas trilhas nas quais podíamos caminhar e ver macaquinhos, vários tipos de pássaros, e outros bichos que eu não conseguia identificar. Havia um mirante do qual podia-se avistar a praia, quase deserta, as falésias imponentes, e pela manhã, alguns golfinhos fazendo seu percurso pelo mar. 
Poucas vezes me senti tão feliz como naqueles dias em que tomávamos o café-da-manhã com aquela vista estonteante, e logo depois descíamos uma grande escada que terminava na areia da praia. Eu tomava sol ouvindo música, e você lia um livro que eu emprestara. Era um livro repleto de contos sobre vários tipos de amor. Ao terminar de ler, você apenas me devolveu e disse "gostei", sem comentar nenhuma história ou acrescentar outra opinião. Não estranhei, pois você não costumava mesmo falar sobre amor. 
Na praia, vez ou outra entrávamos no mar, e nos divertíamos com aquelas brincadeiras bobas de casal, um tentando assustar o outro fingindo ter visto um animal qualquer. Numa destas bobagens, eu usava meus óculos escuros, novinhos em folha, e eles caíram na água. Vendo meu desapontamento, você mergulhou depressa e procurou por alguns minutos, até encontrá-los. Quando me entregou eu te beijei com força, e disse, muito piegas: "meu herói!!". O riso vinha fácil, e das coisas mais banais. Tudo nos distraía, e nada era muito importante. 
Em alguns dias você passava bastante tempo retratando as paisagens com seus equipamentos pesados e complexos, enquanto eu caminhava pela praia tranquilamente. Lembro-me que uma vez vi um cachorro que me pareceu muito solitário, e tirei várias fotos dele com a câmera do meu telefone. Na época eu não sabia, mas talvez aquela cena tenha chamado a minha atenção por se contrastar tanto com meu estado de espírito.
Quando anoitecia, costumávamos sair para jantar e comíamos frutos do mar conversando animadamente, Bebíamos "mojitos" e nos olhávamos com os melhores olhos possíveis, não poderíamos estar mais apaixonados. 
Como fomos felizes naquelas férias nas quais as exigências e o rigor do amor ainda não contaminavam nossa convivência. Quando eu não esperava que você entendesse a minha literatura, e você não queria mais do que espiar as minhas fotos ruins. Não precisávamos de nada além do sol na pele, e do carinho espontâneo que aquele lugar evocava. Ainda não havíamos nos decepcionado tanto um com o outro, e juntos, tínhamos a leveza dos corpos mergulhados no mar. O pior de cada um não tinha ainda emergido, e conservávamos a doce ignorância e ingenuidade em relação ao que nos unia. 
Não saber - ou não querer saber? - do lado sombrio do amor nos mantinha naquele paraíso ensolarado que desfrutavamos por fora e por dentro de nós. O calor da praia a aquecer aqueles sentimentos, a vastidão do mar dando a impressão de que nada poderia esvaziar aquela história.


quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Os livros esperam



Não importa em que momento da história você parou. Se ainda no início, conhecendo os personagens, se bem no meio da trama, quando alguma reviravolta acontecia, ou se acabou nadando e morrendo na praia, interrompendo a leitura antes dos finalmentes. Não se preocupe: os livros sempre esperam. 
Não é preciso muito: basta um marcador - pode ser daqueles mais sofisticados, de metal, ou mesmo um pequeno pedaço de papel. Tem gente que coloca uma flor, que depois seca. Outros usam notas de supermercado, cartões de visita... O fato é que se você deixar um traço, um rastro, um vestígio de que foi bem naquela página que pousou seus olhos pela última vez, o livro aguarda sua volta. Pacientemente. Calmamente. Elegantemente. 
E como se o tempo não tivesse passado, quando abrir de novo aquele emaranhado de folhas, elas te acolherão, ensinando que para certas coisas não existe prazo: se ainda se lembra da história, continue. Se esqueceu uma parte, volte um pouco, leia algumas páginas para trás. Vá aquecendo a memória n (d) as palavras...
Um livro nunca se queixará de abandono. De descaso, de falta de atenção ou de amor. Nunca dirá, enciumado, que percebeu muito bem como você e aquele escritor que ganhou o último Pulitzer estavam mais unidos. Não te fará perguntas. Não exigirá promessas de que desta vez será diferente, de que a leitura fluirá de forma agradável e sem interrupções, de que você, mesmo estando cansado ou sonolento, não ligará a televisão ou preferirá assistir aquelas séries na internet. 
Não pedirá nada, e não estará magoado. Não é por terem se passado três anos desde que você começou a ler aquele romance, que ele se negará a te mostrar partes fundamentais do enredo. Tampouco dirá o tão frequente "bem feito!" dos renegados, quando você, tendo acabado de ler aquele outro ensaio pelo qual o trocou, concluiu que foi pura perda de tempo. 
Um bom livro não sairá da sua memória, por mais estórias que você conheça. E quando o trabalho permitir, quando a vida se mostrar mais serena, quando os filmes ou os encontros se revelarem cansativos ou repetitivos, chegará o momento de voltar a ele. 
Talvez você  se sinta pelo menos um pouquinho satisfeito ao notar que, ao contrário da vida, das pessoas, e de tantas outras coisas, os livros aceitam seus intervalos, suas pausas, seu tempo. 

sábado, 11 de julho de 2015

A menina das qualidades fugidias

Murilo conheceu Alice quando estavam na quinta série. Achava que ela era a menina mais inteligente da sala, que sua letra era a mais bonita, e seu colorido, o mais criativo. Descobriu que estava apaixonado quando, tendo esquecido a merendeira (Murilo era muito esquecido), Alice repartiu com ele seu lanche: pão com manteiga e achocolatado. Por alguma razão desconhecida, aquele pão era diferente. Mais macio, dissolvia na boca como se fosse nuvem salgadinha. E o leite com chocolate... o mais doce que já provara! Nunca mais tomou com prazer o "nescau" que a mãe lhe preparava de manhã. Depois de Alice, tudo mudou.

Nos esportes, ela também era excelente, contrariando a tendência natural das meninas não gostarem muito de educação física nesta idade. Mas Alice gostava! E como era boa, a garota! Jogava bem o futebol, adorava correr pela quadra, e tinha um talento especial para o vôlei. Murilo achava que ela podia ser jogadora profissional, entrar para o time da cidade, depois para o estadual, quem sabe um dia iria até para as olimpíadas?

Alice achava graça das coisas que o colega falava. "Você é muito exagerado...", dizia, sorrindo timidamente. Na verdade, Alice não entendia muito bem as opiniões de Murilo, não concordava com todo aquele alarde. Mas gostava muito de sua companhia, das conversas que tinham enquanto voltavam da escola, e assim, do seu jeito mais pacifista, preferia não questionar os equívocos do amigo, não queria causar mal-estar entre eles. Gostava de como Murilo gostava dela, ainda que não compreendesse muitas coisas naquela história.

Um dia perguntou à mãe como é que as pessoas sabiam o que é amor e quando estavam amando, e esta, desiludida com seu casamento desastroso, respondeu que ninguém sabe de nada, e que todos se enganam enquanto podem. Alice achou melhor não falar mais de amor e dessas coisas de adultos. Alguns anos se passaram entre a primeira vez que Murilo e Alice se falaram na escola, mas continuavam muito próximos, sempre juntos, conversando sobre bobagens e sobre coisas que os deixavam com medo. Murilo não suportava a ideia de ter que mudar de escola, coisa que fatalmente aconteceria no próximo ano, já que a situação em sua casa andava complicada desde que o pai perdera o emprego. Alice tentava consolá-lo dizendo que moravam bem perto, e poderiam se ver depois da aula, quase todos os dias, exceto quando ela tivesse aulas de dança. Espantado, sentindo-se ferido por não saber de mais este gosto da amiga, perguntou: "E desde quando você decidiu fazer aulas de dança? Pensa que isso é pra você? Dançar, feito uma menininha, igual às outras da escola?" Ofendida, Alice não disse nada e simplesmente foi pra casa. A partir daí, um silêncio constrangedor se instalou entre eles: iam juntos para a escola, mas ninguém falava. Sentavam lado a lado no recreio, porém mudos feito bonecos de cera.

Tempos depois, Murilo adoeceu. A professora não soube explicar se era catapora ou caxumba, afinal, foi uma destas doenças de criança que fez com que ele perdesse quase duas semanas de aula. Sem Murilo, Alice encruou. Quando chamada ao quadro, errava os versos, as contas, nem a tabuada mais sabia de cor. No caderno, a letra era um garrancho irreconhecível, as folhas todas soltas, tarefas por fazer, e sua caixa de lápis de cor não saía mais do fundo da mochila. Na aula de educação física parecia uma pamonha. Errava todos os passes, não alcançava a bola, arrastava-se com preguiça quando a professora mandava treinarem a corrida. As equipes não escolhiam mais Alice, pois ela atrapalhava o time. Ficava sempre por último, naquela situação constrangedora em que a professora acabava obrigando algum lado a aceitar a menina.

Alice percebeu que não sabia fazer mais nada, pois Murilo não estava ali para elogiar cada passo que dava, nem para falar sobre seus dias, seus problemas, seu cachorro que roía seus tênis. Notou que nem mesmo a merenda da mãe era boa. O pão, meio dormido, o leite, morno e com nata. Depois de quase três semanas de ausência, a professora anunciou na sala que Murilo havia mudado de escola, pois seu pai tinha sido chamado para trabalhar em Brasília. Alice nunca ouvira falar de Brasília, mas sentiu um ódio profundo por aquele lugar que tinha tirado dela não só seu melhor amigo, e seu primeiro e secreto amor, mas também, todas as suas qualidades, que agora secavam, uma a uma.

sexta-feira, 27 de março de 2015

O sonho de toda noiva

Sonhei que ia me casar. Seria um casamento simples. Eu já estava arrumada, e ia me casar com uma linda bata laranja e uma pantalona preta. Meu cabelo tinha cachos nas pontas, e eu estava maquiada.
De repente me olhei no espelho e tive certeza de que não era possível casar de bata laranja e pantalona preta. Resolvi me vestir de noiva. Eu tinha comprado um vestido de noiva, mas o guardara por medo de que fosse brega casar assim nos dias de hoje.
Mas naquele momento, olhando para a bata laranja, e os cachos nas pontas do cabelo, decidi que não ia mais pensar se era brega ou se não fazia meu tipo: me casaria de noiva.
E foi aquele fuzuê para tirar o vestido do armário, tentar arrumá-lo: passar, engomar, aprumar...
E eu tentando fazer tudo ao mesmo tempo, pois as convidadas que deveriam me ajudar estavam desajeitadas e preguiçosas. Primeiro perderam o pente, depois reclamaram que sentiam muita fome.
"Ora, veja na geladeira, nos armários da cozinha! Tem biscoito, tem comida lá! Peguem, comam, e me ajudem!"
Não ajudavam. Eu procurava desesperadamente o pente, pensando que não queria me casar com aqueles cachos nas pontas dos cabelos, porque parecia uma debutante americana. O que fazer neles, então? Ainda mais sem pente?? E o vestido? Estava pronto, estava seco, estava bonito?
Olhei pela janela e vi um temporal começar a cair. "Vai passar. Isso é chuva de verão, estamos em março." - pensei. Não passava, nem diminuía. Só aumentava. As ruas estavam com enormes poças de água, que obviamente molhariam o vestido de noiva. "Talvez não adiante fazer nada no cabelo, porque a chuva vai estragar tudo". 
E minhas convidadas comendo biscoitos.
Ainda olhando a chuva, pensei que estava tudo tão certinho pra que eu casasse com a bata laranja, mas inventei de bancar a noiva, e agora tudo estava confuso, atrasado e molhado.

Pouco depois desse pensamento eu acordei, e me dei conta de que não me lembrava, nem sequer sabia quem é que era o noivo...

sexta-feira, 6 de março de 2015

Sobre ontem

Eu me lembro que era bem pequena, e a minha vida tinha mudado.
Tinha mudado de casa, minha família tinha mudado.
Tinha mudado a rotina. As brincadeiras, os brinquedos.
Minha mãe não estava mais lá.
Meu pai também não, embora só me desse conta disso bem depois.
Meus parentes eram outros.
Tinha mudado de escola, e não entendia mais nada.
Mas duas coisas me salvaram no meio daquele caos: uma vizinha que se tornou minha amiga - com a qual eu brincava de boneca - , e um bloquinho, onde eu escrevia umas histórias dramáticas sobre uma menina injustiçada.
Ironicamente, a vida não mudou muito desde então.