sábado, 11 de julho de 2015

A menina das qualidades fugidias

Murilo conheceu Alice quando estavam na quinta série. Achava que ela era a menina mais inteligente da sala, que sua letra era a mais bonita, e seu colorido, o mais criativo. Descobriu que estava apaixonado quando, tendo esquecido a merendeira (Murilo era muito esquecido), Alice repartiu com ele seu lanche: pão com manteiga e achocolatado. Por alguma razão desconhecida, aquele pão era diferente. Mais macio, dissolvia na boca como se fosse nuvem salgadinha. E o leite com chocolate... o mais doce que já provara! Nunca mais tomou com prazer o "nescau" que a mãe lhe preparava de manhã. Depois de Alice, tudo mudou.

Nos esportes, ela também era excelente, contrariando a tendência natural das meninas não gostarem muito de educação física nesta idade. Mas Alice gostava! E como era boa, a garota! Jogava bem o futebol, adorava correr pela quadra, e tinha um talento especial para o vôlei. Murilo achava que ela podia ser jogadora profissional, entrar para o time da cidade, depois para o estadual, quem sabe um dia iria até para as olimpíadas?

Alice achava graça das coisas que o colega falava. "Você é muito exagerado...", dizia, sorrindo timidamente. Na verdade, Alice não entendia muito bem as opiniões de Murilo, não concordava com todo aquele alarde. Mas gostava muito de sua companhia, das conversas que tinham enquanto voltavam da escola, e assim, do seu jeito mais pacifista, preferia não questionar os equívocos do amigo, não queria causar mal-estar entre eles. Gostava de como Murilo gostava dela, ainda que não compreendesse muitas coisas naquela história.

Um dia perguntou à mãe como é que as pessoas sabiam o que é amor e quando estavam amando, e esta, desiludida com seu casamento desastroso, respondeu que ninguém sabe de nada, e que todos se enganam enquanto podem. Alice achou melhor não falar mais de amor e dessas coisas de adultos. Alguns anos se passaram entre a primeira vez que Murilo e Alice se falaram na escola, mas continuavam muito próximos, sempre juntos, conversando sobre bobagens e sobre coisas que os deixavam com medo. Murilo não suportava a ideia de ter que mudar de escola, coisa que fatalmente aconteceria no próximo ano, já que a situação em sua casa andava complicada desde que o pai perdera o emprego. Alice tentava consolá-lo dizendo que moravam bem perto, e poderiam se ver depois da aula, quase todos os dias, exceto quando ela tivesse aulas de dança. Espantado, sentindo-se ferido por não saber de mais este gosto da amiga, perguntou: "E desde quando você decidiu fazer aulas de dança? Pensa que isso é pra você? Dançar, feito uma menininha, igual às outras da escola?" Ofendida, Alice não disse nada e simplesmente foi pra casa. A partir daí, um silêncio constrangedor se instalou entre eles: iam juntos para a escola, mas ninguém falava. Sentavam lado a lado no recreio, porém mudos feito bonecos de cera.

Tempos depois, Murilo adoeceu. A professora não soube explicar se era catapora ou caxumba, afinal, foi uma destas doenças de criança que fez com que ele perdesse quase duas semanas de aula. Sem Murilo, Alice encruou. Quando chamada ao quadro, errava os versos, as contas, nem a tabuada mais sabia de cor. No caderno, a letra era um garrancho irreconhecível, as folhas todas soltas, tarefas por fazer, e sua caixa de lápis de cor não saía mais do fundo da mochila. Na aula de educação física parecia uma pamonha. Errava todos os passes, não alcançava a bola, arrastava-se com preguiça quando a professora mandava treinarem a corrida. As equipes não escolhiam mais Alice, pois ela atrapalhava o time. Ficava sempre por último, naquela situação constrangedora em que a professora acabava obrigando algum lado a aceitar a menina.

Alice percebeu que não sabia fazer mais nada, pois Murilo não estava ali para elogiar cada passo que dava, nem para falar sobre seus dias, seus problemas, seu cachorro que roía seus tênis. Notou que nem mesmo a merenda da mãe era boa. O pão, meio dormido, o leite, morno e com nata. Depois de quase três semanas de ausência, a professora anunciou na sala que Murilo havia mudado de escola, pois seu pai tinha sido chamado para trabalhar em Brasília. Alice nunca ouvira falar de Brasília, mas sentiu um ódio profundo por aquele lugar que tinha tirado dela não só seu melhor amigo, e seu primeiro e secreto amor, mas também, todas as suas qualidades, que agora secavam, uma a uma.

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