terça-feira, 27 de maio de 2014

Os monstros que amamos







A figura do monstro sempre foi muito presente no imaginário coletivo. Desde os deuses mais cruéis da mitologia grega, até os vilões das histórias em quadrinhos, passando pelos personagens mais assustadores do cinema, sempre há um lugar reservado para o estranho, o terrível, o mal. É fácil lembrar de alguns personagens que se tornaram referência daquilo que consideramos odiável, horrível: o canibal Hannibal Lecter, de O silêncio dos inocentes; o assustador Jason Vorhees de Sexta-feira 13; o espírito que transforma a doce Regan MacNeil em um verdadeiro diabo em O exorcista; e o sádico Alex DeLarge em Laranja Mecânica. 

Durante a pesquisa de mestrado, encarreguei-me de analisar outro monstro, por assim dizer, tão interessante quanto estes, mas na época ainda pouco conhecido: Dexter Morgan, do seriado Dexter. O que mais me chamou atenção no programa policialesco foi o caráter sedutor com que o serial killer era retratado. Dexter é bonito, inteligente e perspicaz, o que não é exatamente uma novidade no rol da vilania, mas ele é capaz de operar algo que poucos monstros o são: despertar nossa identificação e nossa compaixão. Não por acaso, o seriado foi um enorme sucesso e chegou a oito temporadas. Mas o que faz com que pessoas "normais", que não saem por aí matando o vizinho irritante ou esquartejando o desagradável colega de trabalho gostem tanto de um sujeito como Dexter?

Para entender esse ponto é preciso pensar num mecanismo psíquico poderosíssimo: a identificação. É através dele que buscamos compreender quase tudo e todos ao nosso redor. Para descomplicar, dito em linguagem de feira, podemos afirmar que comparando-nos aos outros, percebendo traços parecidos com os nossos, ficamos psicologicamente mais próximos a eles. Aquilo que nos parece semelhante é mais facilmente assimilável, e portanto, mais aceito. Pois bem, os escritores de Dexter devem ter feito um curso intensivo de metapsicologia kleiniana  (teórica da psicanálise que mais trabalhou a questão da identificação), pois acertaram em cheio a dosagem do recurso na trama do seriado. Para começar, logo na abertura Dexter já nos mostra o personagem em situações cotidianas: escovando os dentes, tomando o café-da-manhã, se vestindo para trabalhar. Nada de cenas muito escalafobéticas ou comportamentos excêntricos: o que vemos é um homem comum, em sua rotina entediante, como a de todos nós. Obviamente as cenas carregam certa duplicidade, deixam entrever algo estranho ali, por trás daquele sujeito aparentemente normal. Mas isso depois que já fisgou o telespectador pela identificação. A gente já se sente na pele do vilão, e não na da vítima. Outro mérito que o seriado tem, e que foi definitivo para que eu quisesse trabalhar a partir dele na minha análise psicanalítica da perversão, é o fato de mostrar uma história de vida do monstro. Ou seja, mais do que ter contato com os crimes e atos terríveis do vilão, temos a oportunidade de entender, através de seu passado, como ele se tornou o que é. Ora, é o presente que qualquer psicanalista bizarro o suficiente para estudar esse assunto pediu a Freud! 

Não vou me alongar na análise de Dexter, pois o objetivo deste texto é outro, e além do mais, ele já foi suficientemente esmiuçado na dissertação, que acabou virando livro depois. Para quem se interessar, está disponível para compra na Amazon, sob o título de Repetição e angústia: origens da perversão.

Citei Dexter apenas para falar deste sentimento ambivalente que muitas vezes nutrimos por estas figuras emblemáticas que representam o mal. Muitas vezes elas nos amedrontam, mas também nos seduzem, haja visto a quantidade de produções literárias e cinematográficas sobre o tema. Há um ponto interessante nessa história que gostaria de ressaltar: tais monstros nos cativam tanto mais se mostram como velhos conhecidos. É como se assim pudéssemos projetar ali, naquelas figuras, algo de nosso próprio mal, de nossa vilania reprimida, daquilo de terrível que não temos estômago para reconhecer em nós mesmos. E não é raro que os vilões sejam  amigos, parentes, pessoas próximas aos mocinhos, às vezes até mesmo a mesma pessoa, como no livro de Robert Louis Stevenson, Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O médico e o monstro). O que dizer ainda do romance de Mary Shelley, no qual o Dr. Frankenstein se horroriza com o resultado de sua tentativa de criar alguém como ele mesmo? Muitas vezes os monstros nada mais são do que as partes que expulsamos de nós. 

Recentemente comecei uma nova pesquisa, desta vez no doutorado, na qual pretendo analisar toda essa temática da maldade e da perversão num contexto mais amplo, pensando no cenário das relações sociais. Meu material de base será estudar grandes fenômenos de perversão compartilhada, como nos regimes totalitários do séc. XX, ou nas relações de exploração e violência que se apresentam atualmente, entre as classes sociais. Para me embrenhar de vez nessa empreitada, vali-me de uma pensadora importantíssima e indispensável quando o assunto é o mal: Hannah Arendt. Além de todo o talento intelectual que possuía, Arendt foi uma mulher corajosa o suficiente para expor suas ideias mais controversas nos momentos mais desfavoráveis a elas. Na década de 60, erradicada há anos nos EUA depois de fugir do regime nazista na Europa, Arendt se oferece para cobrir o julgamento de um dos prisioneiros mais odiados da Segunda Guerra Mundial: Adolf Eichmann. Funcionário do alto escalão do partido nazista, Eichmann foi o responsável pelo transporte de milhões de judeus para os campos de extermínio na Alemanha e países vizinhos. Preso na Argentina, foi levado para Israel e acusado de crime contra a humanidade, pelo assassinato de milhões de pessoas, ao que se declarou inocente. A despeito do clima de exaltação e vingança, e até do fato de ser ela própria judia, Arendt se recusa a enxergar em Eichmann o demônio que todos vêem. Para ela, o acusado não passa de um medíocre burocrata que só cuidava de fazer seu trabalho da melhor forma possível, sem se importar que este trabalho fosse conduzir homens, mulheres e crianças à morte. 

Mas por que falamos de líderes nazistas, vilões de cinema e seriados sobre assassinos em série? Qual é a linha que liga a realidade monstruosa à ficção dos monstros? Insisto nos conceitos de identificação e de projeção, pois são tentativas de nos exorcizar do mal atribuindo-o ao outro, negando nossa própria crueldade, nossa própria maldade. Há também estes movimentos de recuperação do mal defletido através das artes, da ficção: talvez seja somente neste espaço lúdico da mentira verdadeira que possamos assumir - rapidamente, disfarçadamente - que também somos monstros, somos tóxicos, somos ruins em alguma medida. Sim, Hannah Arendt tinha razão: Eichmann não foi o grande vilão, a maldade estava em todos aqueles que participavam do horror do nazismo.  



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