terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Não porque não.

- Já disse que não. E ele respondeu sem tirar os olhos do jornal que lia. Um costume seu, tanto o jornal, quanto o desprezo.
- E posso saber por que?
- Ora, não porque não.

Não rendeu assunto. Continuou com a leitura. Ela sentiu o ódio subir da boca do estômago até a garganta. E aquilo ficou parado, feito uma bola de pêlo, destas que os gatos cospem, mas ela engoliu.
O ódio as vezes a fazia tremer. Não sempre. Só quando era realmente cristalino, em estado bruto.
Odiozinhos destes que se sentem numa fila que um fulano fura, ou com uma colega de escola que gosta de te humilhar, isso ela digeria tranquilamente. Um olhar reprovador, um pensamento macabro, uma idéia para vingança posterior... e pronto! Já foi.
Mas ódio assim, silvestre, parecendo uma fruta recém colhida do pé, já dava mais trabalho.
Tremia. Nestes momentos lembrava de colocar as mãos nos bolsos, ou para trás, para não dar na vista esta fraqueza. Continuou parada no meio da sala, feito estátua, sem saber o que fazer com aquele sentimento pegajoso e amargo. O pai pensou que se tratava de mais uma afronta.

- Vá para o seu quarto agora. 
- Não quero.
- A-GO-RA!

Fosse uns vinte anos mais tarde, ela poderia desculpar a falta de jeito dele. Poderia entender que seu olhar irônico e seus comentários petulantes o incomodavam muito, apesar da pose de que nem se dava conta do que ela dizia. Poderia perceber que ele se sentia perdido, desnorteado diante da tarefa de lidar com uma menina que desconhecia totalmente, apesar de terem vivido sete anos sob o mesmo teto. Poderia até mesmo, quem sabe, perdoar suas faltas e suas omissões, seu silêncio e seus presentes de tamanho errado. Perdoaria não tanto por compaixão, mas por reconhecer-se nessa inabilidade em vários momentos durante sua vida. Por várias palavras que não soube dizer, para certas pessoas. Pela mágoa que viu nascer em quem ela amava muito, mas acabou ferindo por falta de tato, falta de jeito. A mesma falta de jeito daquele dia, do homem lendo o jornal.

No entanto, era ali, naquela hora. Nada disso tinha sido vivido, pensado, refletido. As acusações ainda não tinham se transformado em culpa. E ela ainda se permitia ser vingativa. 

Foi saindo da sala lentamente, para provocá-lo ainda mais. Depois do corredor, não entrou em seu quarto, mas virou a esquerda. Começou a mexer nas coisas dele em cima da cômoda: abriu as gavetas, pegou alguns papéis que pareciam importantes. Rasgou alguns deles, colocando os pedaços no mesmo lugar, bem arrumadinho. 

Deitou-se naquela noite com a certeza de que levaria uma surra assim que o pai encontrasse sua "surpresa". Mas quem a acordou foi sua mãe, na manhã do dia seguinte, chamando-a para se arrumar para a escola. Percebeu que o pai já tinha ido trabalhar. Eles nunca conversaram sobre isso.

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