quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Fracasso monumental


Em seu ensaio sobre Victor Hugo e Os miseráveis (A tentação do impossível, Ed. Alfaguara), Vargas Llosa diz que o autor começou a escrever seu oceânico romance logo após interromper uma peça teatral (Les Jumeaux, ou Os gêmeos) que o ocupara nos últimos tempos, e pouco depois de amargar os dissabores de outra peça, Les Burgraves, que fora um total e completo fracasso de público e de crítica. Vejamos a nota de rodapé que Llosa dedica ao fato: 

"Esta obra (Les Burgraves), estreada em 7 de março de 1843 na Comédie Française, só teve 36 apresentações e foi a que menos dinheiro rendeu ao seu autor. O público ria de certos versos, a crítica foi sarcástica, e humoristas e caricaturistas se esbaldaram com ela. Victor Hugo nunca mais voltou a escrever teatro."

Ao longo do texto, Llosa afirma que o romance Os miseráveis "nasce quando Victor Hugo ainda não havia superado totalmente sua etapa de autor dramático, e é plausível, de fato, que a concepção e as técnicas do gênero tenham se transposto disfarçadamente para a ficção que escrevia, imprimindo-lhe desde o primeiro momento uma natureza teatral. " (Vargas Llosa, M. A tentação do impossível: Victor Hugo e Os miseráveis, p. 92). 

Algumas décadas depois, em 1897, as correspondências trocadas entre Freud e Fliess demonstram também a influência de um grande fracasso na criação de uma teoria importantíssima, que influenciaria o pensamento ocidental e a nossa concepção sobre a mente humana. Trata-se da famosa revelação do pai da psicanálise ao seu amigo e confidente de que "não acredita mais em sua neurótica", ou seja, de que não pensa que as causas que atribuía à neurose sejam verdadeiras. Tal confissão nada mais é do que um desabafo da frustração de Freud diante de suas dificuldades teóricas, técnicas e financeiras, como nos informa Jacqueline Lanouziere no seguinte trecho:

"Compreende-se então, que o que está no topo de sua argumentação é sua prática. Sua neurótica [a ideia que tinha sobre a neurose] não lhe permitia conduzir as análises ao verdadeiro término, e afugentava a clientela. Em 3 de janeiro de 1897, Freud conta a Fliess que não tinha notícias de um paciente que havia retornado a seu país para obter informações a respeito de sua sedutora, ainda viva. E no dia 16 de maio do mesmo ano, ele anuncia a partida prematura de outro paciente: 'Meu banqueiro, aquele dentre os meus pacientes cuja análise mais tinha avançado, escapou-me num momento decisivo, embora tenha chegado a me revelar as cenas finais. Sofri uma grande perda material, e estou convencido de que não sei ainda todos os passos de meu trabalho. Mas suportei isso com tranquilidade, dizendo a mim mesmo que deveria esperar ainda um longo tempo pelo desenlace completo de um tratamento. No entanto, isso deve ser possível, e eu aguardarei.' ” (Lanouziere, J. Histoire secrète de la seduction sous le regne de Freud, Presses Universitaires France. Tradução nossa.)

 Estas dúvidas a respeito da etiologia da neurose causaram em Freud uma verdadeira desorientação, fazendo com que questionasse a fundo as bases de seu pensamento. Sabemos que tais aflições culminaram no abandono da "Teoria da Sedução", e na concepção de realidade psíquica que foi tão cara à psicanálise. 

Mas não deixemos que o sucesso posterior inebrie nossos sentidos e nos faça dar pouca importância a este momento de desespero: as palavras de Freud deixam claro que ele estava tão perdido que já não conseguia avaliar com nitidez como deveria conduzir os tratamentos, qual era a melhor forma de fazer o seu trabalho. Além disso, ele nos brinda com a magnífica imagem de um banqueiro que vai-se embora, símbolo perfeito da erosão intelectual, narcísica e financeira que atinge um analista quando seus esforços se revelam ineficazes.

Por que, então, ler Freud com Victor Hugo (ou vice-versa)? Porque ambos nos deram (mesmo nos bastidores) exemplos de estrondosas quedas ou faltas de êxito que, por mais que abalassem seus espíritos criativos, não foram aceitas como um destino, mas "requentadas", aproveitadas futuramente. É importante atentar para esse detalhe: não é apenas uma lição à la auto-ajuda, de que é necessário persistir. Trata-se aqui da possibilidade de retirar dessa experiência negativa algum material que poderá compor outros arranjos, de modo diferente - ou até disfarçado - e que faça com que estes sejam, por sua vez, aceitos e apreciados. 

É como Victor Hugo enxertando teatro em seu romance. Como Freud teorizando num movimento espiral que ora considera a Teoria da Sedução, ora a renega. Disso tudo talvez possamos concluir que o fracasso é parte fundamental do sucesso. 

Ah, se tivéssemos essa habilidade... esse dom de transformar o erro em lucro...








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