terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A gosto



Nos conhecemos numa pizzaria, por acaso, depois de uma peça de teatro. 
Alguns meses depois, marcamos de nos encontrar para jantar. Eu fiquei responsável pela sobremesa, mas como andava enlouquecida com a tradução de um texto, acabei optando pela praticidade e levando cerejas em calda e sorvete de chocolate. 
Quando cheguei em sua casa, me perguntou: "O que você gostaria de jantar?". Meio sem jeito, disse que podia ser o que ele achasse melhor, e depois emendei um "o que for mais fácil...".
"O mais fácil nem sempre é o melhor", respondeu tirando várias coisas da geladeira.
Quase uma hora mais tarde, depois de um pouco de vinho e uma boa conversa na beira do fogão, serviu uma divina batata suíça recheada com camarão e gorgonzola, combinando, sem saber, dois dos ingredientes de que mais gosto.
No dia seguinte, enquanto eu ainda dormia, preparou-me uma caneca de café com leite e uma tigela de cereais com banana. Embora não sejam coisas que costumo comer no café da manhã, a delicadeza da mesa arrumada deixou tudo mais gostoso.
Nos finais de semana seguintes continuei a frequentar sua cozinha e a descobrir novos sabores em  massas, risotos, saladas, peixes, e até tapiocas. Tinha uma horta em casa, e quando sentíamos fome durante a noite ele preparava deliciosos sanduíches com folhas frescas.
Com o passar do tempo notei que eu, que sempre gostei de me aventurar na cozinha, nunca tinha lhe servido nada. Claro que fazia questão de ajudá-lo na preparação dos pratos, mas nunca fizera nada sozinha, nem tomava a iniciativa de cozinhar.
Embora tenha estranhado aquela inibição, respeitei meu tempo. Continuei em meu posto de "sous-chef": picava os legumes, tirava e guardava alimentos na geladeira, arrumava a mesa, lavava os pratos.
Só bastante tempo depois pude entender o que se passava. Foi num dia em que estava assistindo televisão e ele me trouxe camarão (sempre camarão!) frito, e carinhosamente colocou na minha boca, assim como os namorados fazem. Percebi então que não deixava de cozinhar por insegurança ou por preguiça, mas por não querer abrir mão daquela cena toda, da impressão de ser ternamente cuidada, como eu não era há tanto tempo.
E de repente me lembrei de que estava em dívida desde o primeiro jantar. Levantei do sofá e fui preparar a sobremesa.

* Recentemente uma amiga me presenteou com O livro neurótico de receitas, da professora Ana Cecília Carvalho. Fiquei encantada com a leveza do texto, que combina de forma muito bem humorada receitas e histórias de culinária com conceitos psicanalíticos. Indico a leitura para quem deseja temperar a sua vida. (Carvalho, Ana Cecília. O livro neurótico de receitas. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2012.)


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