segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Não querer saber

Um dos mecanismos psíquicos comuns na perversão é o que Freud chamou de Verleungnung, e que poderíamos traduzir por recusa. Com esse termo, Freud pretendia diferenciar a perversão - como organização psíquica - da neurose e da psicose. De modo simplificado, poderíamos dizer que, diante de um conflito, o neurótico abre mão de um desejo para se adequar às normas sociais. Por outro lado, o psicótico sacrifica a própria realidade para manter sua fantasia, ou seja, desprende-se dos limites do mundo externo, da realidade compartilhada socialmente, a fim de preservar seus desejos internos. Cabe aqui uma observação, de que estamos falando de fantasias e desejos inconscientes, e portanto em grande parte desconhecidos de seus próprios autores.

Neste panorama que considera a ligação do sujeito com a realidade externa, podemos pensar que a perversão seria algo como permanecer no meio dos dois caminhos acima citados. Não romper com a realidade, embarcando num delírio psicótico, mas também não abrir mão de certos desejos que o sujeito sabe serem inconciliáveis com a nossa cultura. Octave Mannonni (1973) usou uma expressão interessante para definir esse aspecto: "Eu sei, mas mesmo assim..." Mas o que ele sabe, o perverso? Sabe, por exemplo, que na nossa sociedade, pedofilia é crime. Que alguns tipos de enlace amoroso e sexual são extremamente prejudiciais aos outros (relações sádicas, permeadas pela violência física e/ou psíquica), que certos comportamentos compulsivos podem colocá-lo em perigo (algumas práticas masoquistas, ou o abuso de certas substâncias). Sabe, e no entanto, prossegue. Sabe, mas diante da força pulsional que o impele a continuar, preferia não saber.

Desde 1905, com os Três Ensaios sobre a sexualidade, texto que não se esgota nunca, Freud nos advertira que os traços perversos não devem ser considerados apenas sinais de uma patologia, pois em alguma medida eles existem em todos nós. A sexualidade é perversa por excelência, já que não se reduz ao que é classificado como normal. Recentemente, alguns comentários de Robert Stoller a respeito da perversão me pareceram bastante pertinentes, pois tentam resgatar essa aproximação entre o normal e o patológico, entre o psiquismo neurótico e o perverso.

Um ponto, em especial, chamou minha atenção: o papel do risco e a luta contra o tédio na perversão. De acordo com Stoller (1975), o risco é extremamente importante na dinâmica perversa, pois é ele que mantém a excitação sexual. É como se o perverso precisasse manter certo nível de perigo em seu horizonte para que a satisfação sexual ocorra. Se pensarmos rapidamente em alguns exemplos de perversão (sadismo, masoquismo, fetichismo, voyerismo, exibicionismo...), logo perceberemos que tal premissa faz sentido. Entretanto, é necessário compreender que a erotização do risco advém justamente da angústia e do medo de vivenciar o tédio, de experimentar um estado de "anestesia psíquica", ou seja, certa ausência de sensações. Por temer cair numa existência banal e apática o perverso tenta provocar respostas afetivas extremas, tanto em si mesmo, quanto nos outros.

Outro fator de excitação, segundo Stoller, é a novidade. Aquilo que é conhecido, compreendido, traduzido demais se torna entediante e descartável para o perverso. Apesar de sua prática repetitiva, de seus padrões fixos de satisfação sexual, o perverso renova seu comportamento através do objeto, que geralmente é substituído em curtos intervalos de tempo. Estar diante de um novo objeto evoca no sujeito toda a excitação e o perigo de não saber muito sobre ele, de não saber como lidar com ele, de não saber como a situação acabará. Mas ao mesmo tempo, tal objeto faz com que se conserve a ilusão de que é possível inventar um outro roteiro, de que ele, o perverso, controlará a cena desta vez. De que não permanecerá do lado passivo, e sim do lado ativo da cena (veja bem, ainda que estejamos falando de um perverso masoquista, o ponto é a atividade, já que o masoquista também exige que o outro encarne um personagem na cena, se restrinja ao papel sádico). Deste modo, não saber é uma forma de manter a distância necessária entre sujeito e objeto, de permitir que o perverso se proteja da relação íntima e afetiva que poderia surgir do conhecimento mútuo, e que colocaria em xeque seu modus operandi. Em última instância, o contato significativo e profundo com os outros ameaça a existência do perverso, porque suas bases identitárias foram construídas em cima de seus comportamentos repetitivos. Para ele, deixar-se afetar pelos outros é se arriscar a perder a própria identidade.

Falamos de um tipo de psiquismo fragilmente arranjado como o do perverso, mas não devemos nos esquecer que várias dessas defesas também aparecem naqueles que não merecem esse termo como diagnóstico. Atualmente, nota-se em grande número de pessoas algumas formas perversas de estabelecer relações sociais. Uma delas é exatamente esse desejo de não saber, de não conhecer o outro intimamente. Uma recusa em decifrá-lo, mantendo-o sempre a uma distância segura o bastante para que não entre em contato com as partes mais assustadoras de si mesmo, com aquilo que se acredita ter de pior, de insuportável. Mas o que nem sempre se percebe nesses casos é que se a recusa impede que venha à tona todo o conteúdo destrutivo que o sujeito acredita possuir, ela bloqueia também outra parte significativa de sua personalidade, que poderia ser valorizada, analisada, trabalhada, aceita pelo outro... No fundo, não querer saber do outro é também, e principalmente, não querer saber desse potencial de si mesmo.

Um comentário:

Anônimo disse...

D. Moça, a senhorita poderia atrever-se a conhecer alguns dos perversos à sua volta, antes de descrever fantasmas tipificados. Há todo um mundo lá fora.