sábado, 11 de agosto de 2012

O novo e a sedução

Por que tendemos a transpor o raciocínio comercial para as relações amorosas? "Porque o ato de consumir talvez seja o que mais defina nosso estilo de vida atual" é uma resposta chavão. Não acho que esteja errada. Mas talvez falte alguma coisa nesse argumento. Quando compramos um produto, salvo se queremos economizar ou procuramos algo raro, esperamos que ele seja novo. E, portanto, que não tenha sido usado por ninguém.

Quando nos engajamos num relacionamento, muitas vezes essa expectativa também começa a nos inquietar. Ela pode vir disfarçada num pensamento de que "é preciso saber um pouco do tipo de relação que aquela pessoa manteve com outras, anteriormente, para ter uma ideia do modo como ela se comporta, do que é e do que não é capaz numa situação amorosa". Muito pouca verdade mora nessa justificativa, penso. Primeiro porque por mais que se conheça o passado de alguém, e seu estilo de vínculo, não significa que podemos prever como irá amar determinada pessoa. Cada relacionamento é único, e depende da interação entre todos os envolvidos. Segundo, porque me parece que o que queremos verificar, com essa curiosidade - mais ou menos como o parceiro que procura sinais de traição rezando para não encontrá-los -, é se e quantas vezes o outro amou antes de nós. Qual era a natureza daquele relacionamento? Como era o namoro? Ficavam sempre juntos, pareciam apaixonados, ou estavam mais para um casal desencontrado? Que tipo de sentimentos ele (a) despertava nela (ele), e vice-versa? Quais motivos os mantinham unidos?

 
Susanna e os velhos (1610), de Artemísia Gentileschi.

Ao contrário da postura altiva e orgulhosa que se costuma adotar, fingindo nada querer saber sobre o passado do objeto amoroso, todos nós, em algum momento, empreendemos uma pesquisa nesse sentido, ainda que muito sutilmente, com uma ou outra pergunta bem colocada, às pessoas certas. Buscamos, com essas investigações torturantes, ter a confirmação de que o (a) parceiro (a) NUNCA, em momento algum em sua vida, sentiu por alguém o que sente por nós.

Queremos uma relação nova, mas não só isso, queremos uma pessoa novinha em folha, zero quilômetro.

Queremos que ela tenha lá tido suas experiências no cenário afetivo - afinal, a inabilidade total para lidar com as tempestades amorosas também não é interessante -, mas não muitas. Ou melhor, não muito intensas. Não a ponto de preservar traços indeléveis de outro alguém, marcas profundas e permanentes de sensações e sentimentos vividos somente com aquela pessoa, naquele contexto, que não serão repetidos conosco.

Estou lendo e traduzindo esse texto da Jacqueline Lanouzière, Histoire secrète de la séduction sous le règne de Freud (1991, PUF), no qual ela faz um riquíssimo apanhado da ideia de sedução como agente etiológico do trauma psíquico. Como bem sabe todo psicanalista, a sedução conserva tanto um caráter traumático, quanto um potencial de subjetivação e de cura. É uma via de mão dupla, que depende muito mais da maneira como é exercida, do que por quem, e quando o é. No primeiro capítulo, a autora faz uma espécie de linha do tempo, mostrando os zigue-zagues freudianos em suas tentativas de encontrar um culpado para a histeria. O pai de uma moça histérica teria sido sedutor demais? Teria sexualizado além da conta a relação com a criança, gerando a patologia? Ou, na verdade, a verdadeira sedução teria sido a protagonizada pela mãe, que, nos primeiros cuidados íntimos com o bebê, erotiza seu corpo, inoculando ali formas muito particulares de amar e ser amado, que serão conservadas e reprisadas para sempre?


A esta pergunta Freud nunca respondeu. Talvez por não ter chegado, como diria Laplanche, a propor uma teoria mais abrangente da sedução. Ou talvez, penso eu, porque para essa pergunta não exista uma resposta definitiva. Quem foi o (a) sedutor (a) que mais nos marcou? Qual amor é/foi o mais importante? Quais as marcas que foram escritas em nossos corpos, e não poderão ser apagadas? Certamente nunca saberemos a respeito d'isso. Por mais que seja possível identificar momentos importantes, histórias que nortearam a construção da nossa, carinhos ou tapas que moldaram nosso jeito de amar, conhecer nossos grandes amores parece uma tarefa improvável, pois quanto mais se investiga e deseja saber, mais escapole de nossas mãos. Amamos mais quando não sabemos: nem como, nem por que.

Como exigir que o outro seja uma mercadoria nova, um produto sem traços e arranhões, se não conhecemos nem mesmo os nossos próprios defeitos de fábrica? Mais, ainda: como negar ao outro o direito a essas experiências amorosas prévias, se provavelmente foram elas mesmas que o trouxeram até nós?



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