quinta-feira, 26 de julho de 2012

Pouco




Você não gosta muito quando eu te amo. No entanto, pede carinho e cobra cuidado. Mas não gosta muito. De quando eu olho para aquela cicatriz que você tem, e mexo em seus cabelos. Eu sempre lembro de você me contando como se machucou. Mas não acredito muito. Fico imaginando outras possíveis formas daquela cicatriz ter se formado. Talvez porque você tem várias delas pelo corpo, e eu confundo as histórias. Talvez porque suas cicatrizes sejam mesmo sua confusão. Mas vejo, percebo que você não gosta. De quando eu ligo com aquela voz diferente, no meio da correria do dia, e falo que te amo, totalmente fora de contexto. Ou de quando eu digo olhando pra você, e fica aquele silêncio, e então você sorri, meio sem jeito, e agradece, e até fala que é recíproco. Mas eu não acredito muito. E acho o cúmulo o seu agradecimento, e fico me perguntando que tipo de gente agradece por ser amada. E isso me faz lembrar de quando eu ia com a minha mãe visitar alguém, um parente, ou vizinho, e a pessoa servia algum quitute na sala. Existia uma cota, um acordo tácito de quanto eu podia comer sem ser inconveniente. Um, dois pedaços, no máximo. Não passava disso, ou então lá vinha o olhar fuzilante da minha mãe. Por isso, mesmo que depois o anfitrião fosse simpático, e quase implorasse pra eu comer mais daquilo que ele tinha comprado ou feito especialmente para nós, eu só dava um sorriso amarelo, exatamente como o seu, e dizia: "Obrigada".

Abandono, de Oswaldo Goeldi.

2 comentários:

Leonardo Ramos disse...

Larissa,

Este seu texto está excelente. Tanto o tema quanto seu tratamento me agradam bastante. Essa é uma razão para eu ter gostado mais deste que de outros anteriores, mas existem mais.

A sua escolha em ter colocado a palavra "pouco" apenas no título e reforçado o "muito" durante o texto, dando o mesmo sentido de escassez é genial. Isso cria um jogo de contrastes e consonâncias que potencializa o "recado" que a voz do texto quer transmitir.

Da mesma forma, a repetição de palavras durante o texto - "muito" é uma delas, além das conjunções "mas", "talvez", "e", "ou" - colocam muito claro a angústia que essa voz quer comunicar ao seu interlocutor. Isso fica mais bonito e mais palpável no momento em que a voz vai chegando ao núcleo do conflito, onde a conjunção "e" fica mais frequente, como se ela quisesse despejar, numa corrente contínua (as conjunções aditivas servem para isso, para ligar uma oração na outra, dando ideia de continuidade de pensamento) tudo o que vinha represando.

Por fim, a escolha de palavras no trecho final, relacionando-as ao amor, é impressionante! "Cota", "acordo tácito", "máximo", "comprado", "feito especialmente para nós", junto com a metáfora de um banquete que é oferecido mas que não pode ser desfrutado plenamente é a cereja do bolo - já que estamos falando de comida! :D Lembrei-me daquela cena memorável de "O labirinto do fauno", em que a menina depara com uma mesa farta, mas que não é para ser consumida. Assim que ela demonstra um pouco (!) de desejo, ela á punida pelo vigilante do banquete (que, aliás, aparece também no seu texto, na figura da mãe). Isso pode servir de metáfora para inúmeras situações humanas, e no caso do tema do seu texto é bastante expressivo.

Penso que, hoje, um bom texto é aquele que consegue um máximo de efeito com poucas palavras. E seu texto é eficiente nisso! Cada vez que eu leio, penso: "Poxa, queria ter escrito isso."

Larissa Bacelete disse...

Uau, Léo!
que beleza ouvir tantos elogios de uma pessoa que é fera na escrita!
Mas confesso que eu não pensei nem na metade desses efeitos que vc citou... na verdade, foi um texto que me veio inteiro, de uma só vez, no chuveiro. Foi sair, abrir o note, e transcrever... acho que foi a angústia que baixou de uma vez mesmo. Talvez por isso o texto tenha sido convincente em expressá-la...
Obrigada, e visite sempre essa casa, com seus comentários e suas críticas.
:-)