domingo, 2 de dezembro de 2012

Cicatrizes

"Poucas coisas assustam mais que a felicidade". O rápido insight veio enquanto cortava os limões para colocar na bebida que acabara de inventar devido à ausência de ingredientes adequados. Resolveu tomar alguma coisa para relaxar um pouco, porque a tensão dos últimos dias já estava comprometendo seu raciocínio - como se não bastasse ter comprometido seu humor.
Há muito tempo não ficava sozinha daquele jeito. Não apenas fisicamente, mas também sentia-se emocionalmente isolada, ainda que estivesse perto de gente que lhe fosse próxima. Na verdade, sentia-se distante de si mesma.
Não dormia bem, não conseguia cumprir suas tarefas. Não encontrava constância e tranquilidade em seus pensamentos. No divã do analista, deparava-se com a tarefa de responder à pergunta "O que há de errado?". Questão que ecoou, tomou consistência e fez com que ela amargasse outras noites de insônia, com todo aquele barulho.
Não sabia.
Lembrou das vezes em que percebia o que a incomodava: alguma coisa fora de ordem, fora do tempo, ou muito distante do (s) seu (s) desejo (s). Pensou ser triste e confortador saber pelo que se sofre.
Agora não sabia. Como na história que uma conhecida tinha lhe contado de uma família unida, amorosa, equilibrada, que mesmo assim não ia lá muito bem. Pais zelosos, filhos cuidados, carinho e respeito, e ainda assim, um dos membros se envolvera repetidamente em situações de risco, passara a viver nas ruas, se expondo a castigos e maus-tratos. Ficou intrigada quando a moça comentou a respeito daquele drama tão distante dela.
Lembrou-se de outra conversa, que teve com alguns amigos meses antes, na qual discutiam se era possível evitar que os filhos tivessem trajetórias muito opostas aos desejos dos pais em relação a eles. Mesmo não sendo mãe, defendeu com unhas e dentes que era. Que o destino das crianças era atravessado pela responsabilidade dos adultos sobre elas, que era possível - e era dever - pautar a criação das mesmas nestas incertezas e possibilidades futuras, preocupando-se com as consequências de cada passo dado.
Riu da própria ignorância quando se distraiu e cortou o dedo, ao partir o último limão. Foi um ferimento superficial, mas ela ainda não sabia, não tinha a menor ideia do que havia de errado.

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