terça-feira, 3 de julho de 2012

O bom samaritano

Em Dogville (2003) Lars von Trier nos angustia apresentando a história de Grace, uma mocinha bonita que será abusada, de todas as maneiras, durante o filme. No início, nossa reação automática é sentir pena desta personagem, pois nos identificamos à sua fragilidade - quando ela relata estar sendo perseguida por um gângster -, e à sua vontade de fazer o que for preciso para se manter na cidade.
Em oposição à piedade que sentimos nesse primeiro momento com a impressão de uma Grace à mercê dos perigos do mundo, começamos a formar outra opinião sobre esta figura. Na verdade, esta mulher aparentemente delicada é forte o suficiente para realizar tarefas pesadas que lhe são impostas: fazer todo o serviço doméstico, trabalhar no campo, servir sexualmente alguns senhores...
Grace faz tudo sem pestanejar. Não se revolta, não reage, e ainda parece justificar, com benevolência, os atos cruéis dos moradores da cidade, fato que nos causa ainda maior incômodo.



Gosto dessa frase do Lacan que nos adverte: "desconfie das ciladas da compaixão, daquilo que nos impede de fazer mal ao outro...", porque nos convida a ir além desta sensação de piedade ou de aflição que nos causam os bons samaritanos. Desconfiem, ele diz, querendo iluminar um outro aspecto da predisposição incansável de ajudar o outro. É dela que fala o tão temido gângster de Dogville, no desfecho do filme, que se revela, na verdade, o pai da personagem agredida. Ele diz que a filha sempre o acusara de ser um homem arrogante, mas que pensa que Grace é que merecia este adjetivo, pois ela não julgava o comportamento das outras pessoas por sentir pena delas. "Você tem esta ideia de que ninguém, de maneira alguma, pode chegar a ter os mesmos padrões éticos que você. Não consigo pensar em nada mais arrogante do que isso!".

Diante dos argumentos do pai, Grace passa a ver a cidade e seus moradores com outros olhos. Percebe que, ainda que as circunstâncias e as variáveis de suas vidas fossem levadas em conta, para seus padrões, os habitantes de Dogville não foram bons o bastante. Não fizeram tudo o que podiam. É nesse instante que há uma mudança na posição subjetiva da personagem: concluindo que poderiam se aproveitar da fraqueza de outra pessoa, assim como fizeram com ela, decide que seria melhor se aquelas pessoas não existissem mais. Pede ao pai que seus capangas metralhem todos os moradores.

Lars von Trier tem esse jeito meio fanático de contar as coisas. Essa forma asfixiante de nos levar a experimentar o insuportável para clarear elementos com os quais lidamos no cotidiano. Quem pode garantir que a bondade extrema, a gentileza inabalável, o desejo incessante de ajudar, não se ancoram, paradoxalmente, numa recusa de partilhar com o outro aquilo que se tem? Que fronteira separa o indulgente que acredita na recuperação do agressor, daquele que não agride por ter desistido de toda e qualquer mudança? Por ter se enclausurado, narcisicamente, na resignação de esperar sempre pouco do outro?

A cereja do bolo é a pergunta do pai de Grace quando esta afirma não querer deixar Dogville, mesmo com todos os percalços que tem enfrentado. 

- As pessoas que vivem aqui estão fazendo o melhor que podem, sob circunstâncias muito difíceis...
- Mas o melhor que elas podem fazer é bom o suficiente?


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