Nunca fui uma pessoa feliz. Quando criança, não era feliz. Eu chorava. Não achava graça nas brincadeiras dos meus colegas. Me chamavam de esquisita.
Eu desconfiava de tudo. Odiava os velhinhos que nos davam chocolates e biscoitos, estes que têm pinta de vovôs sem netos. Meus amigos adoravam-nos. Pegavam suas guloseimas como ratinhos famintos. Eu nunca aceitava. Adivinhava a maldade escondida por trás daquelas rugas e pantufas.
Na adolescência, era pior. O mundo já era ruim o bastante para mim desde sempre. Desde que me entendia por gente. Mas quando entrei na puberdade, descobri que as coisas ainda podiam piorar. Eu era feia. Os meninos do meu colégio não olhavam para mim. Nem eu pra eles. Chamava-os, em segredo, de perfeitos imbecis inúteis. Nome pomposo, para contrastar com a insignificância de meus colegas na minha vida. Idiotas. Não namorei. Não gostava de conversar. Preferia ficar em casa, trancada em meu quarto, onde podia destilar melhor meu ódio. Pensar em tudo que gostaria de fazer com minha família... Acreditem, não eram pensamentos puros...
Um belo dia, minha mãe inventou que eu devia me crismar. É, aquela palhaçada religiosa. Crisma: um sacramento, confirmação de um laço com a Igreja, era o que eles diziam. Laço com a Igreja? Só se for a Satânica, eu pensava. Acho que a monitora de crisma foi a primeira pessoa que planejei matar.
Eu sei, falei da minha família. Mas a eles eu só desejava fazer sofrer. Machucados, lacerações, torturas psicológicas. Nossos laços patológicos eram intensos demais para deixá-los ir assim tão fácil. Não, não queria que eles morressem.
Mas a monitora... ah, esta sim. Desejei matá-la. Uma punhalada, certeira, bem no meio do coração. Imaginava um coração, como a gente via no laboratório de biologia da escola, um de boi, sendo partido ao meio, o sangue jorrando, e ele parando aos poucos de bater.
Me deliciava com esta imagem enquanto aquela idiota falava de amor, de Jesus... ela usava a palavra 'Cristo'. Acho que nunca falou Jesus. O nome dele. Cristo... O modo como ela pronunciava 'Cristo' só me fazia pensar mais e mais em uma forma de matá-la. Ela dizia, o sangue jorrava na minha imaginação.
Conheci o que era sexo aos vinte e seis anos de idade. O canalha não acreditava que eu fosse virgem. Riu da minha cara, o babaca. Subiu em cima de mim como um porco, grunhiu feito um animal, como aqueles que eu via na fazenda do meu avô quando era pequena. Lembrei de quando capavam os bichos. Amarravam as patas deles, cortavam o saco com um golpe rápido, e escorria um fio grosso e vermelho. Os porcos faziam um barulho horrível. De sofrimento. Minhas primas tinham medo, ou aflição, sei lá. Parece que não suportavam ver um ser agonizando. Eu gostava. Ouvia tudo, enquanto elas tapavam as orelhas com as mãos.
Quando o homem saiu de cima de mim, depois de me esporrar como se fizesse com uma puta qualquer, senti vontade de laçar seus braços e pernas com uma corda bem firme. O pensamento que me martelava a mente era que eu gostaria muito de castrá-lo, igualzinho faziam meus tios e meu avô. Como o porco que ele era. E ele, o homem, com aquele sorrizinho babaca, com aquela cara de satisfeito, aquele membro meio flácido, perguntando se eu tinha gozado.
Meu casamento aconteceu quando eu achei que poderia viver o resto de minha vida em paz, sozinha. Conheci o Sandro num bar que costumava frequentar, perto de onde eu morava. Gostava de ir lá quase todas as noites, pouco depois de voltar do trabalho. Enchia os cornos, trocava duas palavras com o cara do bar, e depois ir embora. Dormia bem, bêbada.
O Sandro destoava daquele pulgueiro. Era fino, elegante. Usava roupas de marca, sapatos caros. Tinha uma caneta daquelas 'Mont Blanc' no bolso, que costumava usar pra preencher os cheques quando ia pagar a conta. Vez ou outra o vi preencher cheques e entregar a algumas vagabundas. Pagava puta com cheque, o engomadinho?
Me divertia vendo a bizarra combinação daquele filhinho da mamãe com aquele bar asqueroso. Sim, porque o lugar era um inferninho. Até eu tinha nojo. E por isso mesmo é que voltava lá, quase sempre.
Sandro e eu começamos a transar nem me lembro mais como, nem por que.
Eu o desprezava profundamente. O chamava de bebê chorão. O apelido veio porque ele chorou na primeira noite que saiu comigo. Me comeu chorando, imaginem que patético.
Contou que a mulher tinha morrido, parece que em acidente de avião. E eu pensei: " E eu com isso?". O Sandro só sabia chorar. Um babaca.
Casamos só no civil, sem festa, sem cerimônia religiosa. Também, quem é que eu poderia convidar? Não tenho amigos. Nem amigas, o que eu agradeço. Detesto as mulheres. Insuportáveis seres. Falam, fofocam, comem, se enfeitam... vacas!
O Sandro ainda tinha uns cinco ou seis bons amigos quando nos conhecemos. Da época que ele era casado com a Marina, sua ex- mulher. Dois casais, mais o Marco e o Paulo.
Costumavam vir aqui em casa, traziam vinho, presentes para mim, na maioria das vezes objetos de decoração para a casa. Eu nunca agradeci. Pegava o embrulho como que por obrigação. Guardava no fundo do armário, ou quebrava. Nos dias em que meu marido estava especialmente triste, eu gostava de quebrar os presentes que seus amigos me davam. Ele chorava mais. Era bom, eu pensava, que assim ele ia entendendo que sofrimento nunca é demais...
Depois de um tempo, todos abandonaram o Sandro. Não aparecem mais aqui. Ás vezes mandam cartões de Natal ou aniversário. Eu gostei. Melhor assim.
O Sandro não usa mais roupas de grife. Emagreceu, ficou com uns olhos fundos e uma cara de cansaço permanentes.
Compramos uma casa na praia. Vamos sempre pra lá. Ele se senta na varanda e lê Poe. Eu fumo, cuido do jardim, e preparo as refeições.
Não conversamos com os vizinhos. Nunca fomos a uma festa para a qual nos convidaram. Não tivemos filhos, e agora eu já estou velha demais.
Melhor assim. Morreremos os dois juntos, aqui na casa da praia, com roupas puídas, a casa deteriorada pelo tempo. Não faremos reformas.
Ainda passo o tempo imaginando aquele coração sendo partido ao meio. Um só golpe. talvez um machado, ou um facão bem afiado. E ele se divide em duas metades, que vão lentamente parando de se movimentar. O pulsar cessando aos poucos, o sangue saindo por todos os lados.
Judith e Holofernes, de Artemísia Gentileschi.
Judith e Holofernes, de Artemísia Gentileschi.
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