segunda-feira, 19 de julho de 2010

Contradições demasiadamente humanas

Acabo de ler o impressionante ‘A Sangue Frio’, de Truman Capote. O livro, que segundo o próprio autor inaugurou um novo gênero literário (romance de não – ficção), trata do assassinato de quatro membros da mesma família numa pequena cidade no estado do Kansas, EUA, em 1959.


A história do crime que causou medo na população tranquila de Holcomb, cidade em que se situava a fazenda da família Clutter, é excitante. Desde o patético engano que levou os assassinos a invadirem a casa e matar os proprietários e dois filhos, até a curiosa infância errante de um dos criminosos, Perry Smith, nos deparamos com pitorescos incidentes que aguçam ainda mais nosso interesse pelo ocorrido.

Entretanto, o aspecto mais admirável da obra de Capote não é – a meu ver – sua habilidade em contar de modo atraente um caso de violência e seus desdobramentos na vida dos moradores da cidadezinha em que tudo aconteceu.

O que me capturou (totalmente, diga-se de passagem) nesta leitura foi a forma como o autor traça a personalidade dos responsáveis pelas quatro mortes. Perry Smith e Richard Hickock nos são apresentados, não apenas pelos crimes que cometeram, mas com toda uma gama profunda de pensamentos, ações, sentimentos e matizes que os tornam extremamente humanos.


Confesso que em vários momentos tive a sensação de que a pena aplicada ao caso – pena de morte – foi justa, e que os condenados mereceram pagar com a própria morte aquelas vidas que tiraram brutalmente, e por razões tão banais. (Cabe aqui dizer que Smith e Hickock pensavam encontrar um cofre na propriedade dos Clutter, de onde roubariam até U$ 10.000,00. No entanto, esta informação estava incorreta, e no fim das contas conseguiram levar apenas U$ 50,00 que tiraram da carteira do Sr. Clutter) Em outras passagens, porém, tinha profundo respeito e admiração por Perry Smith, principalmente por suas tentativas de demonstrar certa erudição e inteligência, a despeito da falta de oportunidade que tivera para estudar. As cenas de espancamento, estupro, abandono, fome e todo tipo de exposição a descontrole que aparecem na história da vida de Smith, se não chegam a comover, pelo menos permitem entender – e não digo aceitar ou, mesmo “perdoar” – a explosão de violência que vitimou a distinta família de classe abastada do Kansas em 59. O mesmo vale para Hickock, o Dick: apesar da postura contida e racional, as confidências a Capote acerca de suas tendências à pedofilia nos mostram outra faceta deste homem...

Muitos pontos do livro foram objeto de especulação após a publicação deste romance não – fictício. O que seria de fato verdadeiro, e quanto teria da imaginação do autor em ‘A Sangue Frio’? Para além deste debate, de qualquer pesquisa exaustiva do material (que, por sinal, Capote realizou durante 5 longos anos), ou mesmo da credibilidade dos leitores nos fatos tais como contados pelo autor, um ponto indiscutivelmente brilhante se destaca nesta obra. Ao mergulhar na vida dos dois criminosos, tão odiados por todos que conheciam ou tinham ouvido falar da adorável família Clutter, Capote abre uma janela através da qual é difícil enxergar. Conhecendo aqueles homens sobre os quais todo o mal parecia ter sido projetado pelos moradores de Holcomb, destrinchando-lhes a história, narrando sobre eles acontecimentos corriqueiros, às vezes engraçados, o autor faz com que pouco a pouco nos reconheçamos neles. Alguns traços identificatórios inevitavelmente vão surgindo: uma ou outra brincadeira infantil da qual nos recordamos, um jeito especial de maltratar cachorros, sentimentos hostis pelos que nos agrediram em algum momento do passado... Estes nódulos de reconhecimento, através dos quais percebemos que também abrigamos partes de Dick Hickock ou de Perry Smith, servem para dissolver a fronteira entre virtude e defeito, generosidade e violência, monstruoso e humano. Pois esta linha parece ser muito mais tênue do que supomos quando nos definimos, tomando de empréstimo alguns adjetivos escolhidos a nosso gosto. Fronteira movediça, da qual Capote deve ter se dado conta enquanto se envolvia com os dois assassinos. Pelo que o livro deixa transparecer, o autor revelou extrema simpatia por Hickock e Smith, ajudando-os a contratar bons advogados e a adiar a execução várias vezes. Em outros momentos, porém, Capote parece ter desconsiderado a fragilidade dos presos enquanto colhia deles material para sua escrita, desejando, inclusive, que a pena se cumprisse, para que pudesse finalmente acabar o livro.

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