quinta-feira, 18 de junho de 2009

A pobreza de Narciso

Curvado diante de uma fonte Narciso observa impassível sua imagem refletida na água. De acordo com a lenda conhecida, tal experiência é de tamanha intensidade que o leva à morte.
Acobertado por sua parafernália masculina aquele homem tem passado os últimos dias esnobando sua parceira. Ele ignora seus ataques de ciúme, vai pra cama mais cedo quando ela decide falar de suas inseguranças, e sustenta debilmente um olhar travestido de desejo para outras mulheres que o cercam.
Este personagem nunca disse para a mulher que a amava, nem mesmo na noite em que ela, de forma patética, balbuciou um "eu te adoro tanto..." enquanto ele fingia dormir. Ele, aconselhado pelos amigos, foge das cobranças femininas como o diabo da cruz, alegando, com um ar blasé "não querer dar satisfações a ninguém".
É verdade que ele a trata com respeito, e até certo cuidado. Mas rechaça qualquer vestígio de contaminação amorosa. Se diz livre, sedento por conhecer muitas outras pessoas. No entanto priva-se de conhecer aquela mulher que vive bem ali, na sua frente. Ele esquece os casos de família mais engraçados que ela já contou, não se lembra de seus gostos e preferências na hora de escolher um presente. É, enfim, um "distraído".
Distraído que teme se ver vítima de traição. Sonda, procura, olhando de soslaio, sintomas de infidelidade nos pertences da parceira. Age como um detetive trabalhando à paisana: não pode se deixar flagrar.
Raramente nota-se nele o menor sinal de vacilação. Quase imperceptível. Uma tensão discreta que se anuncia palidamente nos gestos, olhares, na voz quando sente que ela poderia ir e não mais voltar.
Aterrorizado diante do perigo de ser devorado, consumido, submisso às agruras amorosas, ele se encarcera na posição de homem independente, imune aos efeitos da paixão.
A pobreza de nosso Narciso às avessas é a cegueira de se deixar acorrentar na engrenagem que movimenta sua personalidade forjada. Tentando escapar do pavor do abandono, da dependência do outro, da dor da falta, o personagem cede à estereotipia da negação. Veste a si mesmo com uma máscara que anda a exibir por aí, e tanto engana quanto esfola, na medida em que retira dele a possibilidade de sentir-se amado. De amar e desejar.
Narciso, preso à sua imagem refletida, vai aos poucos se afogando nesta metáfora: embebedando-se de si mesmo , indo cada vez mais fundo, lá onde não possam mais olhar para ele.

 
Narciso (1594-1596), de Caravaggio.

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