domingo, 18 de outubro de 2009

A confusão na minha cabeça

No dia seguinte eu teria uma prova importante. Decisiva, eu diria. Um exame que poderia determinar os próximos rumos de minha trajetória profissional.
No entanto, não estudava.
Tudo bem, serei honesta em afirmar que aquele era apenas o primeiro teste, uma prova de língua francesa que, pelo que tudo indicava, seria relativamente fácil. Mas mesmo assim... faltava uma revisão. Uma leitura cuidadosa de textos científicos "en français", uma olhada geral na gramática, "un coup d'oeil" nas conjugações... nada! Enrolei, deixando - como sempre - para estudar na última hora, com a desculpa de "estar ocupada demais com meu projeto de mestrado". A última hora chegou, e eu não fiz mais do que ler alguns trechos de textos fáceis do meu antigo livro do curso de francês...
Que decepção! Que desânimo...
Continuava ali, parada, a fitar meu livro de francês, como se esperasse dele um sinal, um grito, um passar de páginas que me revelasse assim de bandeja o que eu precisaria saber na prova do dia seguinte.
Nada. Ele não me dizia absolutamente nada. Não me respondia... E eu, perguntava???
"Você sabe o que é ter a cabeça vazia?" - me disse outro dia uma colega que iria se casar. Preocupada demais com a cerimônia, ela quase não podia pensar em nada. Bolo, vestido, viagem, marido. Dava pena que só vendo.
Minhas questões eram mais "feijão - com - arroz" : "Qual é o meu lugar?" "Pertenço a esta gente?" "Afinal, o que eu sou??". Assim não dá. "Você sabe o que é ter a cabeça cheia?" - pergunto em silêncio numa conversa imaginária com a colega - noiva. Pensava em casa, mas não era a minha. Família, mas qual? Lar, pertencimento, mas era um vazio danado... Era o Natal e seus presentes, os sinos já martelando na minha cabeça... "E quem não tem família, onde passa o Natal?" Mas nós ainda estávamos em Outubro...
Não, assim não dá. Não há francês que chegue, não há palavra que ordene, que organize essa bagunça toda. A confusão na minha cabeça.
"Você sabe o que é ter a cabeça confusa?" - continuo meu papo platônico com a noiva. "Assim, como se um ladrão, aproveitando a ausência da família no feriado de fim de ano, entrasse na casa e roubasse as cerejas do bolo. Não, nada de levar as jóias da mãe, ou o vídeo - game caro das crianças, a T.V. de plasma do pai... o ladrão deixou tudo lá. No entanto, só por prazer, foi entrando em cada cômodo e jogando todos os objetos no chão: roupas, livros, sapatos, papéis, toalhas... esvaziando os vidros de perfume, sujando as paredes com chantily... E antes de sair, como troféu, ele leva um pote, bem pequeno, com as cerejas que a mãe usaria para enfeitar a sobremesa do dia seguinte. Você sabe o que é isso?"
O livro de francês, agora fatigado, depois de tentar em vão me convencer a estudar pelo menos o "subjonctif", faz cara de quem não entende, e pergunta, em coro com a noiva: "Mas para quê se aborrecer tanto por causa de cerejas?"
Eu é que me aborreço com tal pergunta. Ora, mas são dois tolos estes interlocutores. Será que não entendem o que digo?
"Cerejas não são coisinhas insignificantes. Uma cereja pode mudar o gosto do dia. Além do mais, lembrem-se que o ladrão já tinha feito toda aquela bagunça na casa. E só para ser sádico, retirou da mulher a possibilidade de fingir que nada se passou. Pois agora não tinha mais jeito: sem cerejas era preciso enfrentar o que aconteceu... E o que aconteceu foi a desordem daquela gente. Quando tiram as nossas coisas assim, misturando tudo, tudo exposto ali, no chão, para que os outros vejam, dá uma confusão danada. Recordamos de coisas que estavam enterradas. Antigas cartas de amor aparecem. Vestidos velhos que nos lembram épocas distantes, brinquedos que nem mais lembrávamos ter, livros que foram dados de presente por pessoas agora falecidas...
O trabalho que dá para pôr em ordem não se deve apenas ao sacrifício de tudo encaixotar, limpar o chão e as paredes. Uma casa revirada é dolorido demais. Existem pertences que nunca devem ser remexidos..."
A noiva me olha pensativa, e murmura algo sobre pedir ao marido um gaveteiro com chaves e cadeado.
O livro, sábio como de costume, tendo compreendido o que ouviu, e nada mais desejando acrescentar, passa três páginas e me deixa ler: "Le passé composé".

3 comentários:

Lucas Ed. disse...

Eu tinha alguma coisa pra dizer. Mas esqueci, não sei se fruto de um emburrecimento do gênero, ou pelo roubo das cerejas. Estou na mesma, tanta coisa pra fazer, tão pouca energia disponível (e tempo!) para fazê-las.
Espero que tenha passado, no seu caso. (ainda que, por mais que as coisas tornem às suas gavetas, depois de mexidas, nunca voltam de fato a seus lugares)
Espero que passe, no meu.

P.S.: Passamos de bimestrais a trimestrais?

Larissa Bacelete disse...

adoro os meus leitores...
:)

H. disse...

Seria nossa tarefa roubar as cerejas, ou descobrir para onde foram levadas? Roubar as cerejas seria tirar aquilo que dá ordem, que sustenta (pelo menos de mentira) para dar oportunidade a outra forma de organização . Mas achar para onde foram levadas, é meio que dar uma direção. É inclusive descobrir o que eram essas cerejas e pq foram roubadas. Não sei, mas acho q vou dormir com isso. Seja lá o q isso for.