quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Sobre liberdade, champanhe e feminismo

Não, solidão, hoje não quero me retocar
Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam 

mágoas
Deixo que as águas invadam meu rosto
Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo 

Eu preciso me mostrar

Bonita 
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém 

Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos 

Os desejos que ele tem
Ao me ver passar bonita
Hoje eu arrasei na casa de espelhos
Espalho os meus rostos 

E finjo que finjo que finjo 
Que não sei


A mais bonita, Chico Buarque de Holanda (1989). 




"Não solidão, hoje não quero me retocar". Chico Buarque começa sua canção nos apresentando o lamento de uma mulher que não se sente confortável diante dos padrões de beleza socialmente estabelecidos. Mas logo na segunda estrofe, ele muda o tom e a moça nos surpreende orgulhosa da aparência, confessando que se esbalda no exercício narcisista de se exibir. "Finjo que estão me vendo, eu preciso me mostrar... bonita". A melodia da música acompanha essa virada: se no início nos transmitia uma tristeza das "águas que invadem o rosto" da mulher oprimida, logo depois nos faz cantarolar contentes a beleza de alguém. 

Há quem diga que as músicas de Chico são machistas por retratarem a mulher quase sempre numa posição de submissão, seja ao parceiro, ou ao mundo regido por ideais masculinos. É difícil dar um veredito sobre obra tão vasta e heterogênea, de modo que prefiro não classificar o Chico disso ou aquilo. O que percebo em muitas de suas músicas, e nesta em especial, é que ele expõe uma situação tensa, uma contradição, em termos e modos suaves, dando a impressão de que aquela cena é normal, natural, aceitável. Quando o ouço dizer "bonita, para que os olhos do meu bem não olhem mais ninguém. Pra saber como levar todos os desejos que ele tem...", entendo que quer nos mostrar a dificuldade dessa tentativa feminina de enfrentar e escapar de um ideal estético aprisionante. 

A moça da música começa dizendo que não pretende mais disfarçar a tristeza e se adequar à imagem retocada, perfeita. Quer fugir dos salões onde se penteiam mágoas. No entanto, quando menciona seu companheiro parece esquecer sua posição crítica e se compraz em afirmar que pode capturar todos os olhares e desejos do amado se for bela o suficiente...O tom alegre da música, a referência aos espelhos, tudo isso nos faz esquecer a reflexão que tinha sido cantada nas primeiras frases.Fico pensando que talvez isso também aconteça com algumas mulheres que são tomadas como modelo de independência, sucesso e liberdade na mídia. Será que a mulher realmente pode se dizer livre para escolher como quer ser vista? 







Recentemente uma revista americana foi bastante comentada após ter produzido uma capa na qual uma socialite aparece servindo champanhe nas próprias nádegas. Seu traje luxuoso e sua expressão radiante podem nos dar a ideia de que Kim Kardashian é uma mulher poderosa que decide como se mostrar ao público. Mas será mesmo? Será que ela, de beleza invejável, pode dispensar os retoques e manipulações de imagem? 

Gosto da letra de Chico porque ela parece nos dizer que questionar a dominação masculina que implica na objetificação da mulher é muito mais complexo do que imaginamos. Que não se trata apenas de posições políticas, racionalizações feministas, ou produção de discursos acadêmicos e científicos (que certamente são extremamente importantes). Mas trata-se também, e sobretudo, de condições subjetivas de suportar e responder a certas demandas amorosas contaminadas por esta lógica excludente. De ter que lidar com os impasses e os dilemas aos quais o desejo pode nos conduzir... 

2 comentários:

Unknown disse...

Não sabia do seu blog, uma delícia ler suas crônicas, visões e devaneios. :)

Unknown disse...

Não sabia do seu blog, uma delícia ler suas crônicas, leituras sobre as coisas e devaneios. :)