quarta-feira, 4 de abril de 2012

Muitos

Tinha sempre muitos interesses. Várias atividades ao dia, cada qual com um flerte ou amigo diferente.
Faltava à maioria delas. Marcava, agendava programas com deus e o mundo, e na hora h, não aparecia.
Era uma chuva forte, ou o filme novo que passou no outro cinema, do outro lado da cidade, e ela não pôde resistir. Era a prima que tinha ligado implorando para acompanhá-la num bar meio chato, mas que ela acabou indo, por pena ou sei lá o quê. Era a falta de grana, ou o excesso, que, sendo tão raro, a deixara com vontade de comprar roupas novas, e a fizera perder a noção do tempo no shopping. Era uma gripe, uma dor de cabeça, ou um simples mau-humor.
Mas faltava.
No outro dia, marcava de novo. Tudo outra vez. A mesma ladainha: desta vez eu vou, prometo, claro que não vou te deixar na mão... ah, mas você sabe como quero ir a este show... garanto que estarei lá às 18h!
Obviamente, faltava outra vez.
Acontecia também de chegar atrasada. Muito atrasada. Tão atrasada, que, ou bem o outro desistia e ia embora antes que ela chegasse, ou a esperava, mas já tão invadido de raiva, que o encontro se tornava insuportável.
E era sempre este roteiro: marcar, tentar, se esforçar, acontecer o inesperado, pensar que daria pra chegar, não ir.
Culpava-se, ao contrário do que pensavam as pessoas.
Um dia chegou a se perguntar, com a sinceridade daqueles 2 ou 3 segundos em que somos cruelmente verdadeiros a nosso respeito, por que diabos fazia aquilo.
Por que ter tantos compromissos, tantos objetivos, tantas coisas para fazer, e entregar, e tanta gente pra visitar, e textos atrasados, e ginástica por fazer... pra quê tudo aquilo se sabia muito bem, lá no fundo, que não faria absolutamente nada?! Ou, se fizesse, faria de um jeito tão anônimo e artificial, que nem sequer teria coragem de mostrar a ninguém.
O fato é que tinha interesses demais. Ideias demais. Ia pulando de um pensamento ao outro, sem concluir quase nenhum. E assim, no final do dia - que, pra muita gente, já era o começo -, levava para a cama toneladas de angústia e mal-estar por não ter sido quem deveria. Dormia pouco, tinha pesadelos, e acordava cansada.
Assim passou muitos anos sem ter que se confrontar com aquele assunto.

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