segunda-feira, 19 de abril de 2010

Livro de receitas

E ele disse "gosto de você". Assim, sem mais nem menos. E foi tão inesperado, que ela nem reagiu. Não retribuiu o gostar, não falou que ainda era cedo para dar declarações de afeto, não fez sequer semblant de indiferença. Ficou ali sentada, olhando pro quadro na parede, pensando no que tinha esquecido de comprar no supermercado.
Lembrou-se de que no dia anterior a tia avó fizera aniversário. Ela nem mesmo tinha ligado, desejando felicidades. Nem ligaria. Não era um costume seu. Pensou nas tardes que passava na casa da vó Matilde - era este o nome da velha - quando ainda era bem pequena. Podia sentir o gosto daqueles biscoitos que comia com tanta voracidade. A mãe não gostava que ela se comportasse assim. A olhava com enormes olhos de coruja, claros, límpidos, exalando toda maldade que ela sentiria mais tarde, quando levasse uma surra. "Já não te ensinei que na casa dos outros não se come como uma desembestada? Parece até que deixo meus filhos passando fome!"
Mas não era a "casa dos outros"... era casa de vó Matilde. E lá parecia outro mundo. Os móveis antigos, de madeira escura, as toalhas bordadas que enfeitavam as mesas, a louça bonita, cheia de desenhos... Lá as pessoas não falavam naturalmente, sussuravam umas com as outras, apontavam para a velha dona da casa fazendo sinais e trocando olhares cúmplices.
Talvez este clima de mistério, de não- dizer, fosse o que mais a atraía naquela casa. Adorava visitar a vó Matilde. Não só pelos biscoitos amanteigados que ela servia, mas também pela empreitada sobre a qual se debruçava: de que será que falavam os adultos?
E de repente ele voltou a dizer. Gosto de você, ele disse.
E ela não teve como escapar. Olhou bem para ele, e ele fitando seus olhos como um detetive em serviço.
O que ele quer de mim? - pensou.
O que é que está dizendo?
Não sabia o que pensar. O que deveria sentir?
Pensou que era como se vó Matilde encarnasse nela. Já estava velha, apesar de seus poucos anos.
Não compartilhava do amor. Não sabia o que fazer dele.
Ah, como queria servir ao moço uma bandeja daqueles amenteigados...

3 comentários:

Lucas Ed. disse...

Ah, quando eu crescer eu quero conseguir escrever assim!
Já tem um tempo que eu estava para te fazer uma proposta um tanto indecente: deixa eu tentar adaptar algum conto seu para quadrinhos?
Não sei se este seria o ideal (tem muita narração), mas, sei lá, tem alguns por aí que eu encararia numa boa transformar em roteiros e mandar prum amigo meu ilustrar. Topa?

Larissa Bacelete disse...

Tá mais do que 'topado', Lucas.
Adorei a idéia!
Sirva-se do blog para escolher o texto.
Depois quero ver a carinha dessa menina má...
;P

H. disse...

Lucas, este é bom e tem menos narração: http://aventurasdameninama.blogspot.com/2009/01/sem-calcinha_23.html?spref=fb

E reitero: uau!