Quantas vezes não confundimos estes dois elementos. Uma pessoa importante se mescla à cidade na qual a conhecemos. Uma experiência prazerosa tinge de tons vibrantes um lugar apático. Uma relação de conforto e segurança tece os contornos de uma figura que, em si, pouco tem de especial.
Acredito que o afeto às vezes se propague deste modo: por contágio. Afinal, contagiar é próprio da afetividade. A alegria, a tristeza, a raiva, o humor são sensações partilháveis que podem afetar, causar um efeito no outro. Não é preciso ler Freud e sua Psicologia de Grupo para entender este tipo de atravessamento da excitação, que, vindo do campo externo toma o sujeito física e psiquicamente. Basta ir assistir o futebol no estádio, presenciar uma briga ou um fato muito marcante socialmente. As reações, os comentários, os desejos e as paixões do outro ecoam em nossas percepções, produzindo, por sua vez, reações, comentários e desejos em nós.
Lembro-me de algumas vezes em que participei de cerimônias religiosas e, apesar de admirar a estética litúrgica, e a segurança que transparecia no semblante das pessoas, ter a clareza de não estar sentindo nada de diferente. Ouvindo o relato dos fiéis, seus agradecimentos e descrições de felicidade, alívio, confiança, esperança, questionei-me se por acaso não estaria deixando passar minha fé por não saber reconhecê-la. Pouco tempo levei para concluir que não sabia do que aquelas pessoas estavam falando, e que, por mais bonito e reconfortante que parecesse carregar tais certezas, eu não poderia fazê-lo. Pelo menos não sem ser desonesta comigo mesma.
Assumir que não nos sentimos tocados por algo que é extremamente importante e excitante a alguém que nos rodeia é de uma coragem nem sempre reconhecida e valorizada. Os adolescentes sabem perfeitamente do sofrimento solitário que pode atingir aquele que ousa exibir um gosto distinto do de sua turma. Isso porque a aceitação do outro e a decorrente confirmação identitária que ela acarreta são aspectos que buscamos, independente da fase do desenvolvimento psíquico que vivenciamos. Na idade adulta, estas necessidades de pertencimento e semelhança costumam assumir formas mais sutis, mais sublimadas, o que não quer dizer menos significativas. Certamente as relações de consumo permeiam estes nódulos, evocando em nós a vontade de adquirir certos bens que caracterizam aqueles nos quais queremos nos espelhar.
Creio que seria ingênuo falar aqui sobre certa "independência" de nossos desejos, pois estes são exatamente herdeiros do contato que travamos diariamente com o mundo externo. Não acredito num desejo genuíno, natural, próprio ao sujeito. O desejo, visto que de afeto, é afetável, afetado. Porém, uma reflexão sobre o que há de mais alienante (aqui no sentido de perder parte de si mesmo) neste desejo sempre é possível.
O quanto de nós vibra com a vitória do time favorito, ou se compadece com uma causa social, ou ama o parceiro que propicia bons momentos? O que é perdido, recusado, adormecido quando, no intercâmbio das sensações, cedemos aos apelos do grupo, da maioria, dos que nos amam ( e/ou que amamos)?
Ainda que não possuam respostas fechadas e definitivas, estas perguntas parecem apontar algumas possibilidades de viver, amar e desejar de forma mais singular, não se tratando de uma essência de si mesmo, mas de um modo criativo e único de organizar as interferências e invasões que nos constituem.
As imagens são artes de Nicoletta Ceccoli.
As imagens são artes de Nicoletta Ceccoli.
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