segunda-feira, 1 de março de 2010

O antídoto da Perversão

Há algum tempo venho me interessando bastante pelo tema da perversão. Além de saciar meus impulsos sádicos pesquisando histórias de violência e dominação, o que me atrai principalmente neste assunto é a configuração psíquica destes personagens aos quais costumamos atribuir a maldade e a frieza em estado bruto.

Se existe algo que geralmente é consenso entre aqueles que tentam abordar o tema, embora sem muita profundidade e até com certa pitada de sensacionalismo, é a concepção de que os grandes perversos – entendam-se por isso assassinos em série, ditadores, ou mesmo pessoas que cometem crimes hediondos aparentemente sem motivo – seriam privados de qualquer traço de fragilidade, de sentimentos de compaixão, culpa, ou empatia pelo outro. Embora tal premissa não esteja totalmente incorreta, tenho buscado combater esta idéia, tendo feito disso meu tema de pesquisa no mestrado. O que procuro discutir é que por trás desta imagem de sujeito exclusivamente racional, calculista, que faz uso de sua capacidade intelectual para destruir o próximo sem o menor sinal de arrependimento, existe um arranjo psíquico bem mais complexo, e – pasmem! – muito mais vulnerável do que se imagina.


O Ladrão, de Oswaldo Goeldi.

Importante: não quero com este argumento caracterizar o perverso como uma espécie de homem “vampirizado” por uma força demoníaca, externa, que demandaria nossa piedade. A violência e a intolerância que habitam o perverso são produtos de uma construção histórica, de escolhas que foram repetidamente efetuadas ao longo de sua jornada, moldando, desta forma, o caráter deste indivíduo.

Recentemente dediquei-me à leitura do excelente livro de Purificacion Barcia Gomes, intitulado O método terapêutico de Scheerazade. Talvez com o intuito de ter uma folga de meu tema de pesquisa, mergulhei no mundo encantador das mil e uma noites, com suas histórias fantásticas e toda sua magia. Para minha surpresa, não pude deixar de encontrar ali muitos aspectos interessantes que poderia relacionar aos meus estudos sobre a perversão. Vamos a eles: a hipótese central da autora é a de que a rainha Scheerazade empreende um processo terapêutico ao semear tantas histórias no psiquismo do sultão Schariyar. Ameaçada de morte pelo marido, ela não hesita em lutar pela própria vida com a única arma que tem: a aptidão para o (bom) uso da palavra. Não cabe resumir aqui todas as facetas do riquíssimo estudo de Barcia Gomes, que não restringe sua leitura de As mil e uma noites a uma simples interpretação psicanalítica deste material – o que, diga-se de passagem, já seria um trabalho e tanto. A autora visita os modos de organização social da época, a legislação, e os acontecimentos que marcaram a criação de tais histórias, presenteando os leitores com uma obra agradável e consistente.

 
Arte de Nicoletta Ceccoli.

O que gostaria de ressaltar a respeito desta leitura é a função de ‘tradução’ da personagem Scheerazade. Ainda que soubesse que o sultão costumava desposar belas jovens e assassiná-las no dia seguinte, ela não retrocede: decide casar-se com Schariyar e se dispõe a tecer um enorme tratado de histórias que se intercalam, culminando, após mil e uma noites, na “cura” do rei.Os contos narrados pela personagem frequentemente versam sobre impulsividade e ponderação, sobre arbitrariedade e justiça, sobre extremismo e tolerância, temas que parecem atingir em cheio o coração de Schariyar. Depois de tantas noites, este se mostra mais ameno, e capaz de ligar-se afetivamente à esposa.

Assisti num dia destes um documentário interessante sobre o líder político e ex- presidente da África do Sul, Nelson Mandela. Sua trajetória é impressionante, sendo superada apenas pela extraordinária capacidade de diálogo deste homem. Num dos depoimentos, um amigo próximo e colega de prisão relata ter aprendido com Mandela grande lições (que não por acaso são ótimas estratégias políticas): 1- Estar sempre disposto a negociar com o inimigo, e assim sendo, por mais distante que este pareça estar de seus objetivos, demonstrar que acredita naquela aliança. 2- Nunca se afastar totalmente de seus opositores. Mantê-los por perto, falando sua língua, é a melhor forma de defesa. 3- Buscar combater a força com a mediação, a violência com a argumentação, a opressão com a organização.

O que Scheerazade e Mandela têm em comum? A princípio podemos dizer que ocupam espaços totalmente distintos. Uma é personagem literária, o outro figura real que se tornou símbolo da liberdade na África. Entretanto penso que os dois são unidos pelo que arriscaria dizer ser o antídoto da perversão. Não deixa de nos surpreender o fato de um homem condenado a 27 anos de prisão por um sistema social opressor encontrar-se disposto ao diálogo e às negociações políticas com seus algozes depois de cumprir todos estes anos no isolamento. Esta vocação para a troca, para a escuta, e para a tolerância com a diferença auxiliou nosso personagem real a combater um regime que prezava pela exclusão. Tal como a esposa do sultão Schariyar, ele devolveu idéias quando recebeu sentenças, apresentou alternativas que balizassem a pura impulsividade, buscando incluir, trazer para dentro. Tal movimento, que anteriormente denominei de 'tradução', mas que também podemos chamar, com Winnicott, de função materna nunca pôde ser realizado na estrutura perversa. A falha que aí incide impede que o sujeito empreenda um trabalho de escritura de si mesmo, apagando seus próprios versos, reescrevendo algumas sentenças. Na perversão o que existe é um texto sagrado: um bordão que se repete sem cessar, que paralisa este eterno traduzir...

Resta, como diz a psicanalista Catherine Millot, a inclinação para os extremos, a lei da não- contradição, como forma de se proteger da angústia de desaparecimento. Neste cenário, a diferença torna-se uma ameaça, pois quando a reconfiguração é impossível, o outro representa um inimigo em potencial. As condutas violentas e extremistas ocorrem na mesma proporção dos temores causados pela diversidade, por aquilo que o sujeito perverso não reconhece como seu.

Quem dera que nós, psicanalistas, psicólogos, terapeutas, carregássemos no bolso um Mandela, ou uma Scheerazade, e pudéssemos, como eles, dar palavras ao que é indizível, e conciliar o perverso com os matizes da existência humana...

4 comentários:

Unknown disse...

"Tradução" também é o nome dado por Boaventura a elaboração de estratégias de diálogo entre sujeitos de culturas distintas, de maneira a um contribuir para possibilidades de emancipação do outro e vice-versa.
Nos nossos dias andam faltando "Mandelas"... mas como na utopia resisto permanecer tenho esperança de não tê-los no bolso, mas sim construir-me e contribuir na construção de seres capazes de negociar com o inimigo... não para que se tornem amigos, mas para que reconheçam a importância da palavra como mediadora na promoção de "outro mundo possível"...
Fazer do indizível palavra, talvez uma saída para um mundo melhor...

H. disse...

Um ótimo texto sobre a perversão. Gostei principalmente do domínio que você está tendo do assunto, a ponto de articulá-lo em outros contextos com aparente facilidade. O texto despertou em mim uma curiosidade acerca da proposta. Você viu "Fita Branca"? Eu li um comentário do direto e ele diz q qualquer ensinamento feito na base do autoritarismo acarreta nessa impossibilidade de arranjo. Um bom filme para ajudar a discutir esse tema.

Larissa Bacelete disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Larissa Bacelete disse...

A entrevista com Michael Haneke, diretor de 'A Fita Branca', indicada pelo Hugo, tem muito a ver com o que falamos aqui neste post acerca da perversão. Confiram:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u693168.shtml